Vivemos tempos pós-modernos, cheios de “ades”: individualidades, efemeridades, “automaticidades”, “celularidades”. (Já inventaram até aplicativo pra você ver como vai ficar em avançada idade, está “bombando” por aí.)
Neologismos à parte, às vezes almoço sozinha e a experiência acaba sendo um prato cheio. Na pausa sagrada do meu dia também corrido, repouso os talheres para comer devagar, como recomenda a nutricionista, e me ponho a observar as pessoas. Talvez por vício da profissão ou simples curiosidade (típica do meu signo), vou passeando o olhar por entre as mesas, ouvindo o burburinho de conversas e risadas, o silêncio entre alguns casais compenetrados no seu arroz com feijão, os inconfundíveis apitos de WhatsApp.
Foi num desses dias que tive o prazer de conhecer Dona Neide. Tão dona de si do alto dos seus 90 anos, tão delicada e espontânea na sua maneira de se aproximar de mim e pedir para dividirmos a mesa. “Claro, por favor, fique à vontade!…”
No inusitado desse almoço sem hora marcada saboreamos uma prosa boa, olhos nos olhos, ao vivo e em cores. E aí eu descobri, pergunta lá, pergunta cá, que ela é viúva há 40 anos. Mora sozinha, almoça sozinha, seus filhos vivem em São Paulo e quando vêm visitá-la é uma festa. Perguntei se ela não quis arrumar namorado, a resposta veio ligeira: “Eu não. Namorado só o meu marido, grande amor da minha vida. O jeito vai ser ele me esperar pra gente voltar a namorar. Um dia.”
Parei os olhos na graça que é Dona Neide. Cada palavra, cada ruga, cada fio de cabelo branco; o jeito de vestir, de falar, de conversar com aquela estranha bem ali à sua frente. Do alto dos meus 45 anos, metade do caminho, me senti privilegiada.
Quer saber? Me deu uma alegria (nesses tempos de tanta efemeridade) ouvir que algumas coisas nessa vida permanecem. Me deu uma saudade da minha avó, que se foi tão cedo e este ano faria 99 anos. (Ah, eu daria tudo pra almoçar com ela.) Me deu vontade de ser igual à Dona Neide quando eu crescer. (Deus só me livre e guarde da parte da viuvez, como pode um amor ir embora assim tão cedo?)
Coisas assim, bem assim, que o coração sente e aplicativo nenhum é capaz de inventar.
Cesar Vieira says
Muito obrigado, querida Renata, por este lindo post sobre a simpática e sábia D. Neide, uma lição para todos nós.
Renata Feldman says
Que bom que nessa vida a gente está sempre aprendendo um pouco mais, não é?
Abraço carinhoso!
Dalmir Carneiro Trotta says
Amei. Beijos.
Renata Feldman says
Ahh, coisa boa te ver por aqui!…
Abração, querido professor!
Sara Mourāo Monteiro says
Ai, e eu aqui com vontade de ter participado desse almoço e de ter conhecido D.Neide. Mas lendo esse texto lindo, aproveito para matar a saudade de você! Bjs Sara
Renata Feldman says
Sara, querida, transmissão de pensamento, “te chamei” e você veio!… Esses dias me lembrei de você, com um carinho imenso!… Espero que esteja tudo bem por aí!…
Beijos, saudade!
Angela Belisário says
Olá, belo texto, garanto que foi um senhor banquete esse, pelo pouco que te conheço tenho certeza que fosse bem demorado para usufruir de todos os aprendizados da dona Neide.
Abraços, Angela.
Renata Feldman says
Foi um banquete de palavras, Angela!… Ficaria horas conversando com D. Neide, mas o danado do relógio acabou interrompendo a prosa… (Prosa tão boa quanto aquelas que tínhamos na FUMEC, lembra?) Saudade!
Angela Belisário says
Logo que entrei na FUMEC tive uma colega com esse nome, por coincidência era viúva, tive sua companhia por pouco tempo, mas me valeu muito. Enquanto lia seu texto ela me veio a memória, pois adorava conversar assuntos variados. Bjs
Renata Feldman says
Muita “Deuscidência”, Angela!… Com esse nome e estado civil, é muito provável que tenha sido mesmo a D. Neide!… Adoraria ser professora dela também. E arrisco a dizer que seria eu quem mais iria aprender!…
Abraço carinhoso!