Saiu atrasada para o exame de mamografia, Freud explica. De todas as investigações que uma mulher deve fazer a seu próprio respeito, essa é uma das mais delicadas. Não é à toa que criaram logomarcas, camisetas, campanhas publicitárias e outubros rosas. Somos nosso próprio alvo quando o assunto é prevenção do câncer de mama.
Chegou atrasada e ainda por cima sem o pedido médico, que cabeça. (Quer que chame Freud ou não precisa?) Graças à boa vontade da recepcionista teve a chance voltar em casa, 10 minutos gritados no relógio. Haja tensão, respira fundo, vai dar tudo certo. (No final sempre dá, já dizia Sabino.)
Momento sala de espera. A cada gole d´água, o olhar daquela mulher passeava discreto pelo sofá, indo ao encontro de outras mulheres ressabiadas, ombros retesados, silêncio cúmplice de quem estava no mesmo barco, à espreita de uma boa notícia ou um tsunami qualquer.
– “Patrícia Fernandes*”! Ouviu seu nome e levantou num pulo, coração disparado. Seguindo as instruções da simpática atendente, tirou o sutiã, vestiu a batinha básica e foi encarar a grande máquina. O ar-condicionado gelou até a alma mas a moça parecia ter mão de fada, só podia. “Doeu nada”, pensou Patrícia. Só um incomodozinho, era de se esperar. E o pensamento seguiu otimista: “A primeira mamografia a gente não esquece. Uhu, missão cumprida, não foi nada: nada daquele bicho de sete cabeças que estava grunhindo dentro da minha cabeça.”
Próxima etapa: subir as escadas, tirar a blusa de novo e esperar o doutor pro ultrassom. Serviço completo. Pelo menos agora a posição era mais confortável: deitada, só os braços pra cima e o transdutor deslizando um gel morninho (morninho, viva a tecnologia!) em busca de glândulas, cistos, tecidos, alterações benignas, nódulos malignos não, bate na madeira.
Silêncio mortal, o doutor era uma seriedade só. À frente da paciente, uma tela cinza indecifrável com alguns pontos mais escuros, outros parecendo manchas em movimento e alguns xizinhos que o médico ia marcando como medida. “Hora da verdade”, Pensou Patrícia. “Eu por dentro, funcionando bem, se Deus quiser.”
Mas ali naquela hora, nem mesmo sua fé impediu que as mãos suassem e o pensamento buscasse o pior. Já tinha “se comportado” tão bem em outros exames – endoscopia, colonoscopia, densitometria, cintilografia, tantas ias – mas esse era diferente, “toca fundo na alma da gente, alma feminina. Será que aquela mancha é alguma coisa que não tinha que estar ali? Ai, meu Deus.”
Lembrou da mãe, se emocionou. Lembrou dos filhos, quase chorou. Lembrou da terapeuta na última sessão dizendo: “Quando vier um pensamento ruim à sua cabeça, deixa o mar levar. Entrega, confia e substitui o pensamento negativo pelo positivo. É daí que nasce serenidade e leveza, de uma boniteza só. ”
Foi quando os pontos escuros da tela se transformaram em brigadeiro, cajuzinho, língua de sogra. Patrícia começou a fazer uma retrospectiva de todos os aniversários da filha, do primeiro ao nono, uma festa só. Estava quase no parabéns quando sentiu um papel-toalha sobre os seios, exame encerrado.
– “Tudo bem, doutor?”
– “Tudo certo. Só um cistozinho, coisa sem importância.
E volta pro cajuzinho, quindim, casadinho. Enquanto uns pensamentos vão naufragar no mar, outros vêm pelo ar num respiro de vida, alegria, energia. Igualzinho abraço apertado pro coração afrouxar.
* Nome fictício.
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