

Sim, eu sei. Perdi o timing. Me perdi em meio à minha emoção, à minha ação. (Acho que fiquei paralisada, fora do ar, sem palavras.) Aí a vida veio passando, outros filmes também, e aqui estou: atrasada feito o coelho da Alice, "é tarde, é tarde, é tarde", mas aqui estou. Preciso ticar essa pendência. Check.
Pode ser que você não leia, já tenha se saturado com o assunto, vou entender. Mas preciso escrever, a dívida é comigo mesma. E antes que você vá embora, te adianto um pequeno spoiler: o post não é só sobre o filme, mas sobre a vida. Sobre perdas, morte, dor, vazio. Coisas que eu vivo escutando no consultório. Atemporal, portanto, acho que posso me redimir.
Como você pôde perceber, roubei o advérbio de tempo do título. Para os meus netos e bisnetos que irão me ler um dia, não deixem de assistir, meus queridos: o nome do filme é "Ainda estou aqui." Ganhamos com ele o Oscar de melhor filme de língua estrangeira, uma alegria. (Merecíamos também o troféu de Melhor Filme e Melhor Atriz, não tenho dúvida disso. O concorrente "Anora" que me perdoe, mas não. Não, não, não, mil vezes não. Pronto, falei.)
E por que roubei o advérbio? Porque "Estou aqui" é uma frase que aprendi a dizer quando a morte entra na vida de alguém, muitas vezes arrombando a porta. Aquele alguém que fica. Aquele alguém que é tomado pelo vazio, pelo corte abrupto, pela ausência, pela dor do desamparo. Através de uma única frase ofereço meu abraço, meus ombros, minha mão, meu silêncio, minha presença, um copo d´água. "Estou aqui. Conte comigo."
"Ainda estou aqui" nos coloca diante da morte não só no seu sentido clássico, derradeiro, mas também em vários outros: a morte da liberdade, a morte do sossego, a morte da paz, dos afetos outrora trocados; a morte da rotina de uma família feliz, enfim.
A ditadura do Brasil, como se não bastasse, acabou me levando a outras ditaduras, torturas, prisões, desaparecimento de gente. Desumanidade. Fui lá nos campos de concentração, no Gueto de Varsóvia, nos terroristas desses nossos tempos sombrios, nos reféns que ainda não voltaram pra casa, nos túneis escuros, na poeira da guerra, nos governantes que absolutamente não nos representam, na violência, nos noticiários, na falta de lucidez, discernimento, empatia e amor dos homens. Na falta de pai, mãe, filhos. Falta de paz.
O luto é coletivo e nos atravessa como uma lança pontiaguda perfurando o peito. Preciso urgente mandar uma mensagem para mim, para você e quem mais estiver sofrendo com esta abissal perda de humanidade: "Estou aqui." Estamos, e sentimos muito. Dolorosa e profundamente, sentimos muito.
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