Palavras abraçam. Aproximam. Acolhem. Fazem do silêncio ponte, do coração tradução, da dor um caminho.

Renata Feldman faz das palavras matéria-prima. Seu trabalho é feito de escuta, acolhida, interação, escrita.

Seja no refúgio da psicologia clínica, nos livros publicados ou posts aqui do blog, palavra é preciosidade.

Entre, aconchegue-se e fique à vontade. É uma alegria dividir este espaço com você.

Flor decorativa
Homens

"Carta ao Pai"

06 August, 2009

Cada vez mais me vem a confirmação do quanto pai e mãe tem influência direta na vida da gente. Um gesto. Um grito. Colo. Carinho. Ausência. Presença. Tudo que vem deles deixa marcas pro resto da vida. Marcas que não se apagam com o tempo.

No caso do famoso escritor Franz Kafka, o simples pedido de um copo d´água deixou cicatrizes profundas. Transcrevo aqui um emocionante trecho da carta que ele escreveu ao seu pai, e de como ele se sentiu um nada na vida.
Quanto ao meu pai, tenho a sorte de ter as melhores lembranças, o chamego mais doce e um amor do tamanho do mundo. Ganhei na loteria por tê-lo na minha vida. E ele sabe disso.
“Querido Pai,

Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, será sem dúvida de um modo muito incompleto, porque, também ao escrever, o medo e suas conseqüências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.

De imediato eu só me recordo de um incidente dos primeiros anos. Talvez você também se lembre dele. Uma noite eu choramingava sem parar pedindo água, com certeza não de sede, mas provavelmente em parte para aborrecer, em parte para me distrair. Depois que algumas ameaças severas não tinham adiantado, você me tirou da cama, me levou para a varanda e me deixou ali sozinho, por um momento, de camisola de dormir, diante da porta fechada. Não quero dizer que isso não estava certo, talvez então não fosse realmente possível conseguir o sossego noturno de outra maneira; mas quero caracterizar com isso seus recursos educativos e os efeitos que eles tiveram sobre mim. Sem dúvida, a partir daquele momento eu me tornei obediente, mas fiquei internamente lesado. Segundo a minha índole, nunca pude relacionar direito a naturalidade daquele ato inconseqüente de pedir água com o terror extraordinário de ser arrastado para fora. Anos depois eu ainda sofria com a torturante idéia de que o homem gigantesco, meu pai, à última instância, podia vir quase sem motivo me tirar da cama à noite para me levar à varando e de que eu era para ele, portanto, um nada dessa espécie (…).”
Franz
*Retirado do livro Carta ao Pai, de Franz Kafka, Companhia das Letras

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