Certa vez um jornalista perguntou a uma judia sobrevivente dos campos de concentração:
– A senhora perdoou os nazistas?
– Sim. (…) Eu não suportaria carregá-los dentro de mim.
Perdão é palavra recorrente no setting terapêutico. Palavra-chave, capaz de fechar ciclos ou abrir janelas há tanto tempo emperradas. Entre quatro paredes e duas portas acústicas separando o mundo lá fora, escuto a dor que vem das relações trincadas, quebradas, por vezes desmoronadas. Diante da mágoa erigida como muro, muitos se vêem na impossibilidade de sequer tocar no assunto. “Perdoar como, Renata? (…) Não vou conseguir esquecer o que ele me fez. Foi duro demais pra mim, uma apunhalada no coração.”
Logo no coração, sino de amor que nos toca com a força e delicadeza que esse sentimento pede. Logo ali, onde nascem as emoções mais lindas e também mais difíceis de serem vividas – afinal, de dicotomia também é feita a vida.
Talvez não se trate de esquecer, mas de como lembrar o que um dia gerou tanta mágoa. Há coisas que nem pílula da amnésia – se um dia fosse inventada – surtiria efeito. Talvez nem mesmo uma dose cavalar para apagar os registros do que um dia doeu lá no fundo, imensamente muito.
É preciso deixar lá atrás o que ficou lá atrás, vem a sabedoria gentilmente nos dizer. É preciso ressignificar, destrancar a corrente de chumbo que prende seus pés ao chão e seguir em frente (voar mais leve quem sabe), colhendo paz pelo caminho.
Pode ser que essa colheita se transforme em abraço. Pode ser que esse abraço nunca aconteça de verdade – apenas no seu coração, e tudo bem. (Não deixa de ser de verdade.) O perdão habita duas dimensões, uma prática e outra da alma. Querer perdoar não necessariamente significa promover um encontro, conversar sobre o que passou. Passou. (Se fosse assim, a senhora do início do post marcaria um café com aquele homem que dilacerou uma humanidade inteira, o que seria impraticável e inconcebível.)
Mas o perdão também pode ser um nada, vazio. Para Bert Hellinger, querido mestre das Constelações Familiares que há uma semana nos deixou (gratidão eterna!…), perdoar é um ato de julgamento revestido de arrogância: significa colocar-se acima de alguém e avaliá-lo como um juiz, um Deus que não se é. Se filhos resolvem “perdoar” os pais, então, a desordem se instaura – desequilíbrio na certa. Perdoar nesse sentido não, mas se reconciliar sempre – “sentindo muito”, mudando a postura, tomando o que é para ser tomado, deixando ir o que precisa definitivamente ir.
Qualquer que seja sua ideia sobre o tema, observe que dentro de perdoar há também o verbo doar, o que é no mínimo inspirador. (…) O que você doa quando perdoa? Amor? Compaixão? Empatia? Sentimento? Ensinamento? A própria dor? Um tanto de paz para irrigar o coração?
Beleza no jarro, leveza na alma. Perdoar é é arrancar flores do deserto.
Selma says
Gostaria de compartilhar no face e no
Whatsap com muitas pessoas.
Muito bem
Beijos
Renata Feldman says
Fique à vontade, Selma!
Fico feliz.
Cesar Vieira says
Muito obrigado, querida Renata. O perdão é uma parte importante do amor!
Renata Feldman says
Sim, César. O amor e o perdão andam juntos. De mãos dadas.
Marilene says
Achei excelente para refletir:
Perdoar é um ato de julgamento revestido de arrogância: significa colocar-se acima de alguém e avaliá-lo como um juiz, um Deus que não se é.
Que possamos perdoar e arrancar flores do deserto…
Renata Feldman says
Sim, Marilene. Uma nova perspectiva sobre o perdão e um jardim inteiro pra gente plantar.