A gente morre um pouco cada dia. Sem ritual fúnebre, certidão de óbito ou despedida, vamos partindo aos poucos, sem perceber, sem dizer adeus.
A Deus (e também aos seus pais, sua família, sua memória afetiva) pertence o menino que você foi um dia. Doce, espevitado, olhos brilhando assim que anunciava o dia: “O céu tá azulzinho. Vamos brincar?” Hoje, o céu mal azulou você já está dando nó na gravata, com a responsabilidade de quem sabe que a vida não é brincadeira.
A Deus (e cia) pertence a menina que você foi um dia. Sapeca, tagarela, serelepe, bailarina. Hoje corre, sapateia, chora, dá nó na garganta, silencia, um tanto de ginástica olímpica e malabarismo.
A gente morre um pouco quando perde as estribeiras, o gol da vitória, o emprego dos sonhos, o caminho de casa.
Morre quando enterra o amor de toda uma vida, a esperança de mudança, a alegria de viver. Réquiem de Mozart em ré menor.
Morre de susto, de medo, de amor, de fome, de sede. Um copo d´água, por favor.
Morre de rir, de sentir, de sofrer, de partir. Bota-fora de si.
Morre um tanto imenso, profundamente doloroso e denso, quando alguém querido se vai pra nunca mais voltar.
E aí vem a vida e nos convoca a continuar, apesar de. Chama a ambulância, grita por socorro, faz massagem cardiorrespiratória, convoca os anjos para uma reunião extraordinária. Ária para orquestra, Johann Sebastian Bach. Música para alimentar a alma, já tão desnutrida.
A gente também nasce um pouco cada dia, e esse pouco pode se transformar em muito. O coração para e volta a bater, adormece pra depois acordar, tira folga pra depois trabalhar.
Num impulso de vida, de volta pra lida, se enche de oxigênio, sol, esperança, afeto, certeza, infância.
Vera Botelho says
Que lindo! Já estou sentindo isso com a idade rs. Amei Renata!!!! Como sempre, parabéns!!!!
Renata Feldman says
Ah, Vera querida… Fico daqui imaginando a menina que você foi um dia, tão cheia de luz e riso!…
Muito obrigada, beijos!
Cidinha Ribeiro says
Viver, essa torrente que nos leva para onde o vento toca mais forte. E vamos: aos trambolhões, em sustos e suspenses, ora em respiros de alívio. Que somos nós, senão pequenas folhas que o vento leva e traz ao sabor de tantas correntezas?
Parabéns, Renata, pela sensibilidade e pelo texto.
Renata Feldman says
Que lindeza, Cidinha. Seu comentário é um poema, obrigada pelo presente.
Abraço carinhoso, volte sempre!
Selma Ribeiro Araújo says
Renata, muito lindo seu trxto. Constatação muito triste: a morte diária . Fazer o que: ressuscitar a cada dia e recomeçar.
Renata Feldman says
Constatação bonita, a sua: a possibilidade de nascermos de novo a cada dia, apesar do tanto que morremos também.
Obrigada, Selma!
Abraço carinhoso.