Vem da última produção da Disney minha inspiração para você. Você, que transformaria uma abóbora em um delicioso caldo com alecrim, calabresa e gengibre. (Não esqueça a pimenta.) Você, que trocaria fácil um sapatinho de cristal por uma rasteirinha de swarovski e um creme de massagem para os pés. (Não esqueça de apagar a luz.) Você, que dançaria horas com o príncipe mais charmoso do reino sabendo que ele tem o poder especial de virar sapo. É fato.
Não que eu queira desencantar o conto de fadas, longe de mim. O filme é lindo, de encher os olhos, fidelíssimo à história que te contaram um dia. Mas a vida é mesmo assim, Cinderela. Nem tudo se transforma com uma varinha de condão. (Quem nos dera.)
Se você assistir ao filme com os pezinhos bem no chão, vai perceber que ele também é feito de muitos ingredientes da vida real. A começar pela emblemática figura da madrasta malvada que, na cegueira de sua arrogância e ciúmes, não consegue enxergar e reconhecer o amor que veio antes, muito antes dela.
Pois bem. Antes de a madrasta entrar em cena havia um casamento, um pai, uma mãe, uma filha. Uma família feliz, mas que muito cedo foi se deparando com a dor do luto.
Antes de morrer, a mãe de Cinderela faz um apelo importante:
– “Tenha coragem e seja gentil, minha filha.”
Na lealdade à mãe, a menina segue sua orfandade aceitando com delicadeza e compreensão tudo o que a vida lhe oferece: o novo casamento do pai, as duas irmãs “tortas”, a perda do pai e uma nova convivência marcada pelo abuso, com todas as letras.
– “Cinderela, aquele quarto está muito apertado para suas irmãs…”
– “Claro, Senhora, posso trocar de aposento com elas.”
– “Não, não troque… Melhor: vá para o sótão.”
E o abuso continua no chão que a enteada tem que esfregar, no lugar à mesa que passa a não ter, no baile que não pode ir, no vestido rasgado, no frio doído e em toda a humilhação com que ela “se acostuma” a viver.
Diante da madrasta má, a moça foi boazinha demais. Confundiu gentileza com anulação, passividade, submissão. Deu permissão para se transformar, sem nenhum passe de mágica, na Gata Borralheira que conhecemos.
Em pleno século XXI, algumas “drastas” perpetuam com força a partícula inicial que compõe o substantivo que a caracteriza. Outras, para sorte de seus enteados, conseguem ocupar com responsabilidade, afeto e cuidado o lugar que lhes cabe, olhando para a primeira mulher de seu marido com gratidão. Afinal, foi porque um primeiro casamento não pôde continuar é que ela agora ocupa este lugar, e isso merece todo o respeito. Quando se enxerga a história desta forma, a partícula inicial também se transforma, e estas mulheres acabam por vezes ganhando o descontraído neologismo de “boadrasta”. Boa notícia.
O filme ainda nos faz pensar em autoestima e autenticidade, tesouros que muitas personagens de carne e osso vêm buscando nos dias de hoje. No alvoroço de encontrar o “príncipe dos seus sonhos” (quem é que nunca ouviu falar no “Complexo de Cinderela”?), algumas mulheres se perdem de si, esquecendo-se que tem seu próprio amor para cuidar em primeiríssimo lugar. É nesse impulso desmedido e impensado que se cortam os dedos para o sapato entrar, literalmente se despedaçando em função do outro.
Quando Cinderela finalmente aparece para calçar o sapatinho de cristal, ela se mostra para o príncipe exatamente do jeito que é, sem maquiagem, artifícios ou vestidos encantados. Essa autenticidade faz toda a diferença em uma relação amorosa, que dessa forma já nasce inteira.
Mais um final feliz, apesar de todas as pedras no caminho. Apesar de sabermos que abóboras dão um bom caldo, sapatinhos de cristal quebram e príncipes viram sapo, todos torcemos para que cada um se encontre e se realize na sua particular história de amor. Mesmo que isso não nos isente da dor.
Selma Maria Ribeiro Araujo says
Renata, querida, adorei sua crônica . Como ando precisando de um: menos, Cinderela. Ainda não assisti ao filme. Espero vê-lo com os pés no chão. Beijos para vc é muitas, muitas inspirações.
Renata Feldman says
Menos é mais, Selma querida.
Vá assistir ao filme e depois me conta.
Muito obrigada pelo carinho!
Cecilia Caram says
Re, lembro agora do Complexo de Cinderela, livro inspirado no conto de fadas, algo que todas tivemos um dia, provavelmente.
Voce descreve com primor o “desencanto” da idealização.
E os parágrafos “deu permissão para transformar”…”confundindo gentileza com anulação”…Perfeitos: Temos uma cota de responsabilidade forte em nossos destinos!
Seu texto merece ser lido por todas as mulheres. Vamos divulgar.
Bjos.
Renata Feldman says
Sim, Cecília, cada um tem sua parcela de responsabilidade. Olhando assim fica mais fácil nos tornarmos protagonistas da nossa história, capazes de transformar o que for preciso.
Obrigada por compartilhar comigo!
Abraço carinhoso!
Patrícia says
Quando entendemos que hierarquia existe e responsabilidade também, todos ganham.
Renata Feldman says
Exatamente, Patrícia. Cada um no seu lugar, soma com certeza.
Abraço!