Sim, a maternidade pode não ser nada cor-de-rosa. Nada de “bebê Johnson”, mãe coruja, nada de paraíso. Muito de padecer. Despedaçar-se. Nada de flores. Tudo de dores. Muitas. As mais diversas. As mais profundas.
Vi um pouco disso no meu mestrado, quando fui pesquisar “As várias faces da mãe contemporânea”. Vi um muito disso no belíssimo filme “A filha perdida”, adaptado do livro de Elena Ferrante.
As várias faces da mãe contemporânea? Culpa, dedicação, esgotamento, normas a serem seguidas, transformações a serem vividas, conflitos e ambivalências. Muitas ambivalências. “Maternidade é a melhor coisa do mundo. E a mais difícil também”, palavras de uma das minhas entrevistadas.
“A filha perdida”? Ou seria “a mãe perdida”? Perdida, confusa, sufocada, aprisionada, impaciente, exaurida, tensa, irritada, enlouquecida, angustiada, fragmentada, mergulhada no seu mais profundo desespero. Ela ama, ela odeia, ela clama por liberdade. Ela abandona as duas filhas.
Restou-lhe brincar de boneca, talvez. Cuidar de boneca é mais fácil que cuidar de filho. Restou-lhe brincar ou brigar com as suas memórias. Reconciliar-se com elas, talvez.
Das telas para a realidade, dois lados. Como tudo na vida.
Refugiadas entre as quatro paredes do meu consultório, ouço mães que choram. Que falam. Que engasgam, emudecem, enternecem de amor por seus filhos. Que abrem sorrisos largos. Que gritam a sua dor. Que tecem a maternidade com poesia. Alegria. Lamento. Dor. Dissabor. Que buscam apenas se encontrar, perdidas que estão.
Sua vida daria um filme.
Clara Feldman says
Boa noite, filha! O que mais me marcou no seu (sempre) excelente texto foi a expressão “A mãe perdida”, em contrapartida ao título do filme “A filha perdida”. Importante desmistificar a maternidade-paraíso, não é! Mas, uma coisa é certa: paraíso ou não, é um dos estados mais almejados por uma grande parte das mulheres…E quando não conseguem alcançá-lo, quanta dor, quanta frustração! Parabéns por mais este texto tão terapêutico! ❤️
Cecília Caram says
Re, estou com esse filme na cabeça. Acho que comentei no seu instagran.
Seu texto está impecável, mas peço licenca para enfatizar alguns aspectos que voce abordou muito bem.
Realmente, conciliar maternidade e trabalho fora de casa é um dos grandes desafios das mulheres atuais em nossa sociedade.
Talvez nas sociedades chamadas ” primitivas “, seja um fluir muito tranquilo…Por que?
A organização social é arquitetada para ” nutrir ” as mães com redes de apoio e cooperação mutua, automaticamente.
Assim, as mulheres aprendem a amar seus filhos com calma e sem angústias.
Poderiam, sair pra quaisquer distrações ou trabalhos, sem medos ou culpas, e com segurança que seus bebês estão aconchegados.
Abandono é palavra desconhecida…e trauma? Nem pensar.
(Podemos sugerir a seus leitores, o livro “O mito do amor materno”, de Elizabeth Badinder, e “Sexo e Temperamento” da fenomenal antropologa Margareth Mead. Servem pra estudo e reflexão profunda sobre a história das mulheres ao longo do tempo, sobre relativismo cultural, relacoes de parentesco e o aprendizado do amor materno).
Para quem nao se tornar mãe, por opção voluntária, seja onde for, a vida prosseguirá.
Mas se houver o desejo e nao ocorrer a gravidez, a coisa “muda de figura”.
O sentimento de frustração é certeiro. Há as que farão inseminação artificial, compra de ovulos e tratamentos exaustivos.
Outras deprimirao, e ainda outras se acostumarao com a ” falta”.
Ha ainda as que geraram filhos e os abandonam, tentarão sublimar sua culpa na correria para o sucesso academico, ou perseguindo caminhos da arte. Ou se inserindo em projetos megalomaniacos e freneticos para nao refletirem sobre sua escolha.
No caso do filme, a personagem encontra na boneca roubada, seu elo.perdido, após se aposentar e ter tempo pra revisitar sua história passada.
Os filhos aparecem e expressam sua magoas e dores. Menos mal.
A boneca perdida é reencontrada, pra alegria da crianca e seus pais.
A paisagem é de praia e mar.
Happy end? Nao creio. Não haverá nada mais a fazer pra fechar as feridas tatuadas e silenciadas no tempo, em cada um deles.
O tema da maternidade tem muitos angulos, é instigante e infinito,… mas meu relogio biologico está pedindo pausa.
Parabéns, querida!
Boa noite, querida!
Renata Feldman says
Complexo e profundo seu comentário, Cecília querida. Esse filme tem mesmo o poder de ficar na cabeça e entrar como lança aguda no coração. Uma obra de arte, capaz de suscitar muitas reflexões.
O livro de Badinter me guiou durante o mestrado. Não só “O mito do amor materno” como também o seu best seller mais recente, “O conflito – A mulher e a mãe” – excelente!
“Sexo e temperamento” não conheço, obrigada por compartilhar!
Dentre as tantas reflexões que você trouxe, fica para mim uma conclusão muito certa: sejam mulheres, mães ou filhos (pais também, com certeza!), todos precisam e merecem um lugar ao sol (e também à sombra) do refúgio denominado por nós de terapia. Muito o que se falar, chorar, sentir, refletir.
Abraço carinhoso!
Renata Feldman says
Sim, mãe. Há dor – e amor – para tudo nessa vida. Muitos lados, diversos olhares, inúmeros contrapontos. Há “a filha perdida”, a mãe perdida, a mulher que também se perde em meio ao sofrimento de querer tanto, tanto ser mãe e não conseguir…
Haja coração.
Beijo no seu, que tão bem me aconchega lá dentro.
Cristina Pires de Souza says
Sim, linda missão , mas nada fácil……compreendida apenas por aquelas que viveram isso!
Renata Feldman says
Linda e árdua missão, Cristina. Coisa de filme, e da vida bem como ela é.
Abraço!