Diante de um mundo denso, árido e adoecido, a poesia nos toca e ao mesmo tempo nos falta. Foge-nos ternura e sobra susto (quando não banalizado) perante a notícia, o descaso, o terrorismo, a política, o cotidiano arranhado (arame farpado) de cada um. Tenho dito que, se não criarmos nossos recantos de paz; se não olharmos pelo nosso mundo interno e habitá-lo de luz, fé e coragem, fica tudo muito difícil. Vazio.
Escuto dores, descrenças, abismos de amor todos os dias. Mas na semana passada escutei duas histórias (autorizadamente reproduzidas por aqui) que me fizeram pensar, com os olhos molhados, que esse mundo ainda tem jeito; que, diante de toda a desumanidade que sangra o jornal e a alma, há ainda uma porção de humanidade capaz de curar o mundo.
Na primeira história, uma menina americana de 4 anos pede à sua mãe para escrever uma carta a Deus pedindo a Ele para cuidar bem da sua cachorrinha que morreu. A carta é escrita, selada e colocada na caixa de correio com o seguinte destinatário: “Deus. Endereço: Céu.” Para surpresa da remetente, a resposta chega alguns dias depois, assinada por um Deus acolhedor e amoroso, tranquilizando a menina de que sua cachorrinha está bem, e que Ele ainda brinca com ela de bola por entre as nuvens. (Abençoada seja essa boa alma dos correios americanos que se deu ao trabalho de abraçar uma criança através de papel, caneta, palavras. Simples assim.)
A segunda história aconteceu bem aqui, na Santa Casa de Belo Horizonte. Clarinha, uma criança com câncer em estágio terminal, começou a dar trabalho aos médicos, opondo resistência em receber a medicação necessária. Muita dor, muito incômodo, muito choro e cansaço, tudo misturado. Ao ficar sabendo do caso, o Dr. Marcos procurou saber o que fazia essa pacientezinha feliz. Pintar, ela adorava pintar.
Numa das intervenções mais lindas que eu já ouvi contar (um legítimo doutor da alegria), Dr. Marcos foi até o quarto da menina, se apresentou e fez um pedido:
– Você pode pintar o meu rosto? Eu tenho uma festa à fantasia para ir hoje, preciso de ajuda.
Quebrando completamente a rotina dolorosa das seringas, termômetros e estetoscópios, Clarinha pegou o pincel e pintou, encantada de poder viver esse pequeno momento de grande felicidade. Ao final de sua obra de arte, o doutor a colocou em uma cadeira de rodas e pegou uma para ele também. Saíram juntos pelo corredor do hospital, deslizando o inusitado, interpelando quem passasse por eles:
– Oi. Foi ela que me pintou. Você acha que estou bonito? (!…)
A partir daí, nem precisa dizer que ele conseguiu aplicar o medicamento que fosse preciso. Confiança, sintonia, habilidade afetiva: o vínculo estava feito.
Depois de alguns dias, Clarinha acordou de madrugada e pediu à sua mãe para escrever uma carta ao “ursão” (era assim que ela chamava o Dr. Marcos, de tanto pelo que ele tinha nos braços).
– Mas agora, minha filha? Tente dormir, está tarde, amanhã você escreve…
Clarinha insistiu, escreveu, e no dia seguinte morreu, virou anjo oficialmente falando. A carta foi entregue, lindamente entregue. Um dos trechos eu reconto aqui, do meu jeito, ainda tocada pela ternura que se faz canto e recanto no mundo que habita o interior da gente:
“Ursão, você corre demais. Se parar um pouco, como eu, vai ver o tempo que uma formiga leva para caminhar pela parede, indo e vindo. E se chover, vai poder ver o desenho que uma gota faz na janela. Pare e observe. Você corre demais, Ursão.”
Tito says
Reca,seus textos despertam em mim uma grande quantidade de sentimentos , o meu corpo treme mesmo sem sentir frio.
Linda e comovente história,
beijos
Renata Feldman says
É a sua emoção indo ao encontro da minha, pai.
Beijo no seu coração!
Selma Araujo says
Você se supera a cada postagem . Lindo
Renata Feldman says
Obrigada, Selma querida.
Abraço carinhoso!
Marilene says
Renata querida, que linda e emocionante histórias, emocionei a ponto de ver a dor e alegria da Clarinha correndo pelo corredor com o Dr Ursao. Que delicadeza dele proporcionar este momento para ela, eh muito gratificante poder fazer o bem… Um beijo!
Renata Feldman says
Também fiquei emocionada, Marilene. E feliz de poder reproduzir esta história aqui.
Muito obrigada pela visita! Abraço carinhoso.
Eulampia says
Ilhas de felicidade necessárias para seguir em frente!
Renata Feldman says
Ilhas que nos fazem mergulhar no que há de mais profundo em nós, Eulampia.
Muito obrigada pela visita, volte sempre!
Márcia says
Estes exemplos nos fazem pensar que … AINDA RESTA ESPERANÇA …
Suas palavras tocam fundo, Renata. Beijos gratos
Renata Feldman says
Sim, Márcia. Esperança de um mundo mais amoroso e humano, onde a paz possa prevalecer sem guerra ou susto.
Beijos, minha querida!
Thais says
Bom dia Renata! 🙂
Muito bom poder começar o dia lendo esse post cheio de ternura! Já falei em outras vezes, vc toca no fundo da gente!!!
Que Clarinha brilhe muito no céu, por ter se tornado uma estrelinha de Deus!
” Foge-nos ternura e sobra susto ” !… Que não percamos esse jeito de encarar a vida e confiar em Deus como a garotinha americana, e que nos nossos momentos mais difíceis possamos contar com os Ursões de nossas vidas, paramos e observamos o presente que Deus nos concede todos os dias ao acordar, a vida!!!
Obrigada mais uma vez por nos fazer refletir dessa forma especial!
Beijo
Renata Feldman says
Thais querida,
De reflexão em reflexão a gente vai construindo um mundo melhor de se viver.
Obrigada pelos retornos sempre tão positivos e cheios de incentivo!
Abraço “de urso”, fique com Deus!
Cidinha Ribeiro says
Renata, ainda existe esperança. Ela está mesmo nos homens de boa vontade. Eles são poucos, raros, eu diria, mas fazem toda a diferença no mundo.
Ursão, seja nosso Papai Noel, nos ensine a amar. E olhe, não corra tanto. Estamos à sua espera. Feliz Natal!
Renata Feldman says
Deus te ouça, Cidinha, e o “Ursão” também!…
Beijos, minha querida, Feliz Natal!
Maria Inez Girardeli says
Emocionante seu texto.
Nesses tempos tão conturbados, o que nos move é pensar que, além de tudo, ainda nos resta a esperança.
Abraços
Renata Feldman says
Ah, Maria Inez, que a esperança não nos falte nunca!… E que traga um tanto de paz para o mundo respirar melhor!…
Abraço carinhoso!
Marcia Regina says
Renata, bom dia!
Que riqueza de texto…
Simples e tocante.!
Que tenhamos mais tempo para observar nosso cotidianio e ver que na simplicidade das coisas estao gestos que nos tocam fundo o coração..
É preciso parar e observar!
Me emocionei!
Renata Feldman says
Muito obrigada, Marcia Regina!
Sua emoção confirma a minha, e me faz pensar o tanto que esse mundo ainda tem jeito.
Obrigada pela visita, volte sempre!
Angela Belisário says
Nossa é de arrepiar…
Passei por vários momentos parecidos, em parte, quando era voluntária no Hospital CGP atual João Paulo II. Foram momentos que passei que vou carregar comigo para sempre.
Ver o sofrimento e choro daquelas crianças se transformarem em um lindo sorriso, num abraço apertado e mesmo num carinho.
Terminou, não gosto de dizer, mas por motivos até hoje ignorados por toda a nossa turma de mais de 20 pessoas, assíduas a 2 visitas mensais divididas em 2 equipes, das quais eu participava com alegria bolando sempre coisas novas para se fazer.
Grande abraço Renata e obrigada por estes resgates.
Angela Belisário
Renata Feldman says
Mais um lado lindo seu que eu não conhecia, Angela!… Uma pena o projeto não ter ido adiante…
Abraço carinhoso e um Ano Novo cheio de boas emoções!
Clara Feldman says
Inacreditável! Sem palavras!