Domingo de manhã, friozinho de maio. Pai e filho acordam cedo para um programa há muito tempo sonhado, trabalhado, curtido: corrida de carrinhos de rolimã! (Disney é pouco.)
Mãe e filha, com um pouco mais de vagareza, própria do dia, mas sem tirar os olhos do relógio, tomam um táxi e vão até a Fundação de Educação Artística assistir a um recital de piano. No programa, obras do talentoso compositor Ronaldo Miranda. No palco, musicistas apaixonados pelo seu ofício, com destaque para uma pianista pra lá de especial e querida, iluminada pela melodia que carrega na alma: Rosiane Lemos, “Tia Rosi”, que “muito antes de ser a irmã do meu marido” era minha professora de piano, com quem aprendi (e infelizmente já esqueci, ossos do ofício) a tocar Bach e Chopin, paixão dos meus avós. (Ai, que saudade. Ai.)
Na plateia, a emoção de respirar suítes, toccatas, tangos, variações sobre um tema. Respiro e suspiro – allegro, allegretto, lento. Deixo a cabeça pausar o pensamento, deixo o pensamento pousar sobre o coração. Bella no meu colo, bem-comportada do alto dos seus sete anos, vez ou outra me olha e sorri com ar de encantamento e cumplicidade.
E aí entra em cena o número que serviu de inspiração para esta crônica: “Variações sérias sobre um tema de Anacleto de Medeiros”, piano a quatro mãos, 1998.
Nenhum romantismo de Schumann. Nenhuma primavera de Vivaldi ou sinfonia de Beethoven. Toda emoção do mundo (desse nosso mundo pós-moderno) através de quatro mãos que se encontram, gentilmente se encontram e por um instante quase se tocam na antagônica delicadeza do ébano e marfim.
Não conheço Anacleto de Medeiros mas conheço Celina Szrvinsk e Miguel Rosseline, os donos daquelas mãos que fizeram emocionar uma plateia inteira.
Pensamento pousa sobre o coração e conversa comigo, me levando do piano a quatro mãos para o casamento a quatro mãos, testemunha que sou de tantas e tantas histórias de amor.
Com direito a trilha sonora de filme, levemente me conduzo para o amor que se faz ouvir na harmonia e agitação frenética do dia-a-dia, nas respirações pausadas e desenfreadas, nas cordas que vibram e desafinam tem vezes. Chovem os olhos quando penso na luz que vem do sol, lá, si, dó; dos sustos e sustenidos que compõem cada acorde, acordando o amor quando ele, insone, teima em adormecer. Ébano e marfim, sol e lua, não e sim.
Penso no amor que não precisa de orquestra, partitura ou regente para acontecer. Simplesmente acontece, anoitece, amanhece a quatro mãos, simples e generosamente. Mãos que em conjunto erguem taças de vinho, carregam filhos no colo, rezam, abraçam, trabalham duro, plantam árvores, colhem frutos, carregam a compra do supermercado, fazem o almoço mais especial de domingo, tocam a peça mais linda e não cessam de nos tocar profundamente.
Se porventura nascer silêncio e faltar palavras para exprimir a força desse amor a quatro mãos, vinda de um duo que é único, nos valemos da exclamação capaz de dizer tudo:
– Bravo! Bravíssimo!
Cristiane says
Renata Feldman, a cada post seu, um presente para nós, leitores.
Mesmo no cotidiano, há a cumplicidade, a generosidade… Amor a quatro mãos…
Lindo, lindo! Parabéns!
Renata Feldman says
Obrigada, Cris querida!
Que alegria saber que os posts são abertos como se abre um presente!
Abraço carinhoso!
Selma Maria says
Renata, vc se superou. Lindo , lindíssimo. Bravo bravíssimo .
Renata Feldman says
Muito obrigada, Selma querida!
“Culpa” daqueles dois que arrancaram vários “bravo, bravíssimo!” de dentro de mim.
Abraço carinhoso!
Luisa Nogueira says
Mas que saudade da “tia Rosi”. Bravo!!!!
Renata Feldman says
Ela é craque também nisso, Luisa: deixar a gente com saudade!…
Beijos
rosiane says
Rê, obrigada pelas doces palavras! Lindo texto!
Saudades da Luisa Nogueira…..
Renata Feldman says
Eu que agradeço você pela fonte especial de inspiração, Rosi!
Marcia says
MARAVILHOSO como sempre !!! BRAVO !!! BRAVÍSSIMO !!! Parabéns, Renata.
Renata Feldman says
Obrigada, Márcia, muito obrigada!
Fico feliz em compartilhar com você!…