Brrrrrrrr.
O sol está rachando lá fora mas dentro de você faz frio. Menos quinze graus. Hipotermia aguda, febre invertida, endurecimento cardíaco.
Alguém te magoou um dia e esse dia não passou. Ficou congelado na sua memória afetiva, arranhando o coração, impedindo você de seguir em frente.
O que torna a mágoa tão pesada é sua composição emocional: densas partículas de raiva, tristeza, amargura, decepção. E o mais doído é de onde vem tudo isso: de alguém muito importante para você, na quase absoluta maioria das vezes. Caso contrário não doeria tanto.
Você pode ter tido todos os motivos do mundo para ficar mal com o que aconteceu. Alguém te feriu e você se machucou, não dava para ser diferente. Ou não, de repente o que houve foi uma coisa à toa, uma bobagem, mas você grudou no ressentimento igual piche no asfalto. Viche.
Qualquer que tenha sido o desencontro, o mal-estar, o problema é viver o resto da sua vida carregando essa dor que pesa os ombros e entorta a alma. Se foi com alguém da família, prepare-se para conviver com esta relação de pé quebrado nos almoços de domingo, comemorações de aniversário e encontros de Natal. Elimine a palavra abraço do seu vocabulário e agarre-se à televisão mais próxima. Se foi com alguém distante, torça para nunca mais lhe cruzar o caminho; e, se por acaso isso acontecer, atravesse imediatamente a rua.
Mágoa guardada é como água parada: dá lodo, mal cheiro, dá até dengue nos dias de hoje. Agora imagina isso aí dentro de você, fazendo estrago. Pior ainda quando é mágoa congelada, empedrada, com o prazo de validade vencido faz tempo. Faz mal, menino. Faz a vida valer a pena, menina.
Feliz de quem sabe deixar para trás o que ficou lá atrás. Das mínimas picuinhas à mágoa maior do mundo, nada disso tem o poder de deixar você atravancado na vida, tropeçando na dor, remoendo esse gosto amargo de rancor.
Perdoar? Sim, o que não significa esquecer. Tem coisas que jamais se apagam, nem se inventarem a pílula da amnésia. Esquece. Mas perdoar para virar a página e encher de leveza a sua escrita, a sua vida, ah, isso não tem preço.
Um dia perguntaram a uma sobrevivente do campo de concentração se ela havia perdoado os nazistas. Ao seu sim veio a indagação surpresa do jornalista:
– Sim?!
– Sim. Eu perdoei por que eu precisava, porque eu merecia. Porque eu não poderia continuar aquela história dentro de mim.
O perdão envolve sempre uma outra pessoa, mas diz respeito essencialmente a você. É disso que se trata: seu bom dia, sua alegria, seu travesseiro, sua capacidade abençoada de seguir em frente.
Foi?
O sol está te chamando.
Aline Amaral says
Mágoa… deixe que ela se perca em um rio que deságua, na imensidão do mar. Aí é só esquecer, e só perdoar…
Bjo!
Renata Feldman says
Lindo encontro, esse do rio com o mar.
Obrigada, Aline!
Bj!
Madalena says
Lindo!!! E melhor ainda: oportuno!!! Valeu por partilhar e já estou compartilhando!! Obrigada Renata e um grande abraço.
Madalena
Renata Feldman says
Que bom que foi útil, Madalena!
Muito obrigada, um grande abraço!
Aline Vieira says
Viver a vida leve realmente não te preço! Sorrir num dia de sol, depois de chorar dias cinzentos a fio é a melhor coisa do mundo! Belo texto! Acorda menino! Levanta menina!! Bjos no coração Renatinha!♡
Renata Feldman says
Isso aí, menina!
Beijo no coração, Aline!
Cristiane says
Sol? Cadê você? Se não abrir a janela, não vai entrar…
Renata Feldman says
“Sol, derrete a neve que prende o meu coração…”
Quase escuto, tirando lá do baú da infância, aquela clássica história da Formiguinha e a Neve.
Lembra, Cristiane?
Às vezes é assim que nos sentimos: presos, pequenos, frágeis…
Que bom que há sempre um sol nascendo por trás da janela, transformando a paisagem…
Beijos, querida.
Dalmir says
Parabéns, mais uma vez. Sempre Brilhante. Perdoe sempre e faça como eu: deixa a vida te levar… Seja Feliz e agradeça por tudo que Deus te deu e que ainda vai te dar. Renata, Deus te abençoe sempre. Beijos.
Renata Feldman says
Muito obrigada, Dalmir.
A vida não só nos leva como nos ensina muito, sempre.
Grande abraço!
cecilia caram says
Re, seu texto me lembra que alguém me contou que minha xará Cecília Meireles disse que “A caridade é a canção de ninar a dor”.
Fico aqui me indagando quantas vezes tive sucesso com o acalanto de minhas dores “agarradas”; o quanto soube, mesmo com demora, niná-las; o quanto fui caridosa comigo; o quanto me perdoei…
Renata Feldman says
Que lindeza, Cecilia querida!…
Seu depoimento é poema, homenagem e reflexão.
Nossas dores precisam mesmo ser ninadas, acalentadas e amorosamente desgarradas de nós…
Abraço carinhoso!